Texto de Itamar Freitas " As histórias de Santiago e do seu Anuário. In: SANTIAGO, Serafim". Anuário Cristovense ou Cidade de São Cristóvão. São Cristóvão: Editora da UFS, 2009. pp. 9-16.
Detalhe da procissão do Senhor dos Passos em São Cristóvão-SE. Foto: Márcio Garcez. Fonte: Santiago, 2009, p.
Um personagem
Serafim
Santiago[1] é o nome de um historiador desconhecido entre nós. O
graduando de História da UFS, Maurício dos Santos Reis, bem que tentou
biografar a personagem no ano de 2006, depois de conhecer o Anuário
Cristovense. Fez buscas no Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico
de Sergipe – IHGSE e no Arquivo Público do Estado de Sergipe - APES,
inquiriu funcionários da Prefeitura de São Cristóvão, visitou o
Cemitério de Santo Antônio em São Cristóvão, consultou a documentação do
Cartório do 3º ofício, sem conseguir vestígios significativos. Melhor
sorte teve com os depoimentos de alguns intelectuais sergipanos que
consultaram a sua obra: Jackson da Silva Lima, Luiz Antônio Barreto e
Beatriz Góis Dantas.
De Jackson da Silva Lima, historiador que comentou e transcreveu trechos do Anuário no antológico livro Os estudos antropológicos, etnográficos e folclóricos em Sergipe
(1984), Maurício certificou-se da origem dos manuscritos. Há dois
originais: o primeiro, em poder do professor José Cruz, pertence hoje ao
acervo do Instituto Cultural Tobias Barreto - ICTB, sob direção de Luiz
Antônio Barreto. O segundo está no Instituto Histórico e Geográfico de
Sergipe - IHGSE. Tratar-se-ia de uma versão ampliada e revisada do Anuário.
Com
Luiz Antônio Barreto, Maurício informou-se sobre a trajetória da
primeira versão. Chegou ao ICTB como parte do acervo da Biblioteca do
Professor José Cruz, adquirida por compra aos familiares desse professor
sergipano. No mesmo Instituto, Maurício ainda conseguiu o atestado de
óbito de Serafim e uma reprodução ampliada de uma fotografia 3x4 em
preto e branco. Soube também da existência de um formulário nos arquivos
da Loja Maçônica Cotingüiba que informa a data do nascimento de
Santiago: 4 de janeiro de 1859.
Por
fim, com Beatriz Góis Dantas, Maurício soube um pouco mais da
trajetória do primeiro manuscrito, em poder do professor José Cruz.
Talvez tenha conseguido a peça devido às ligações havidas entre a sua
esposa e a família de Serafim Santiago. A pesquisadora sergipana também
teve acesso ao manuscrito de José Cruz e transcreveu alguns trechos em
seu primeiro livro de repercussão nacional – A Taieira em Sergipe (1972).
No
segundo semestre de 2006, Maurício Reis concluiu a licenciatura,
transformou-se em professor de História para crianças e abandonou o
projeto biográfico. Ao final das suas pesquisas, portanto, juntando as
informações colhidas junto aos manuscritos custodiados pelo IHGSE, o
máximo que nos legou sobre o autor do Anuário foi uma legenda e uma
imagem reproduzidas a seguir. Muito pouco para os ávidos perscrutadores
da História e da memória sergipanas, porém, um grande esforço desse que
foi um dedicado estagiário da “Casa de Sergipe”. Temos certeza de que o
trabalho de Maurício será ampliado pelos desdobramentos que esta edição
do Anuário deverá provocar.
Um gênero
Quando
encontramos os escritos de Serafim Santiago duvidamos que dali pudesse
produzir-se alguma peça de relevo, uma resenha talvez. O título da obra –
“Anuário Cristovense” – e as nossas pré-noções, evidentemente, foram os
grandes responsáveis pela relativa discriminação do trabalho como obra
de historiador. Mas, o esforço daquele homem que aos cinqüenta e quatro
anos começou a tecer um presente especial para os seus filhos e netos – a
própria memória (de si, de sua família e do seu município), obrigou-nos
à leitura atenta dos volumosos cadernos manuscritos, recheados de fatos
da história política e cultural de São Cristóvão. Presumimos que não
tinha orientação acadêmica, além das preleções de retórica e poética do
Colégio Atheneu, quem sabe; além dos escritos históricos nativos à
disposição no final do século XIX.
Por
que deu o título de “Anuário” a sua obra? Quais seriam seus modelos?
Quais foram suas escolhas? Enfim, como escrevera a história dos seus e
que função creditava aos próprios registros sobre os costumes da cidade
mais antiga de Sergipe? Ampliando ainda mais o estoque de questões
sugeridas pela leitura dos manuscritos continuamos a nos interrogar: que
História se escrevia no final do século XIX? Que escrita se efetivava
num tempo em que o saber histórico não se havia metodizado? Que
temáticas interessavam ao memorialista como dignas de lembrança aos
pósteros?
No
século XXI, já é difícil circunscrever o gênero ou o tipo textual
preconizado pela Universidade. Há pouco tempo, por exemplo, o
historiador Fernando Novais (1990) apontou, pelo menos, quatro motivos e
lugares de produção dos quais se originavam diversos gêneros admitidos
como História: artigos de vulgarização publicados em jornais e magazines
(escrita ligada às demandas do mercado); memórias, autobiografias,
biografias (trabalhos produzidos individualmente, sem vinculações
institucionais); ensaio, (os escritos institucionais não
universitários); e dissertação, tese, e o artigo de periódico
especializado (a historiografia universitária propriamente dita). Se
assim nos parece – bastante plural –, em pleno século da especialização,
que gênero textual poderia ser considerado como História nos tempos de
Serafim Santiago? Seria o Anuário uma legítima forma de recortar o
tempo, de dar ritmo a vida pretérita, enfim, de organizar a secular e
fragmentária experiência cristovense? Seria o Serafim um historiador?
Essa série de
questões já oferece motivações para meia dezena de monografias.
Entretanto, colocadas nesses termos, o que se tem acima é um falso
problema. Não devemos procurar o gênero ideal ou o mais significativo
que mereça o rótulo de História. Se quisermos descrever as práticas
historiadoras anteriores à Universidade é necessário que sejamos
bastante flexíveis nos critérios, ou melhor, que inventariemos todas as
modalidades que pululam dos jornais, arquivos e bibliotecas e
interroguemos os próprios autores sobre a definição, função e os valores
atribuídos aos seus próprios escritos.
Foi
agindo dessa forma que, recentemente, pudemos estender o limite inicial
da produção historiográfica local para além dos anos 1870, como
encarava a maioria dos historiadores (cf. Freitas, Bibliografia...,
2006). Ao examinar a literatura sobre Sergipe no século XIX, verificamos
que naquele tempo cultivava-se a memória, descrição abreviada,
informação, notícia, apontamento, memorial, narração, biografia,
autobiografia, corografia, ensaio, uma infinidade de registros, mas
nenhuma das obras fora intitulada como “História”. Coragem para encarar o
gênero e nomeálo como História – História de síntese, com explicitação
da teoria e método – somente observamos em Felisbelo Freire. Publicada a
História de Sergipe em 1891, os demais modos de escrita parecem
ter sido lançados à penumbra. Os próprios autores passaram, cada vez
mais, a classificaremse como cronistas – crônicas é o que escreviam.
Nós
mesmos, no final do século XX e início do século XXI, costumamos
estabelecer a síntese de Felisbelo Freire como paradigma e parâmetro
para a qualificação da historiografia produzida até a fundação da
Universidade Federal de Sergipe. Todos conservamos a noção de que os
textos dignos de classificação como de “História” são tão raros a partir
de Felisbelo Freire que não há grande dificuldade para listar as
iniciativas dignas do nome, como foram a defesa do espaço territorial
sergipano produzida por Ivo do Prado (1919) e a tese de José Calazans
sobre a fundação de Aracaju (1944).
Ocorre
que a produção historiográfica sergipana, até a inauguração do curso
universitário de História, (obviamente) não se iniciou com Felisbelo
Freire e nem se encerrou com Calazans. A pluralidade de gêneros se
manteve. Alguns desapareceram, como as descrições e os apontamentos;
outros permanecem – a biografia cultivada por muitos e também a rara
autobiografia. Houve gêneros recuperados do século XVIII – a prática
epistolar de Oliveira Telles (1906). Outros foram inaugurados a partir
da segunda década do século XX, como o didático de Elias Montalvão
(1914), o Álbum de Clodomir Silva (1920), o Dicionário de Armindo Guaraná (1924), as Efemérides de Epifânio Dória (19...) e o Anuário de Serafim Santiago.
Anuário, carta,
efeméride, álbum etc., tudo isso são gêneros textuais, ou seja, são
exemplos de “formas verbais de ação social relativamente estáveis”
(Marcuschi, 2005, p. 25) que ordenam a comunicação entre as pessoas
durante o século XIX e também na primeira metade do século XX. É certo
que o gênero textual se materializa em textos que possuem determinadas
características linguísticas (narrativos, descritivos, com discurso
direto, predominantemente argumentativo – grande marca da tese de
Calazans sobre Aracaju, por exemplo). Mas, não é esse o seu principal
traço definidor: o gênero é um fenômeno construído socialmente. Ele
sobrevive enquanto sua função social se mantém – quando prediz e
interpreta a ação humana, quando facilita a comunicação entre as
pessoas.
Se hoje estranhamos o Anuário
de Serafim Santiago como gênero de escrita da História é porque a sua
função comunicativa já se extinguiu. O seu conteúdo substantivo – as
coisas que conta, a informação, os acontecimentos –, entretanto, vem
ganhando mais valor à medida que o tempo avança, consumindo as fachadas,
os ritos, a memória, os homens, enfim, soterrando os indícios sobre o
passado cristovense e sergipano. É principalmente por esse motivo que o
IHGS tomou a decisão de publicar o manuscrito.
Mas,
de que trata em fim esse exemplar do gênero anuário? Trata, sobretudo,
de “Calendários e festas na antiga São Cristóvão” e de um “Depoimento
sobre o catolicismo popular”, é o que veremos, respectivamente com a
antropóloga Beatriz Góis Dantas e o sociólogo Péricles Morais de Andrade
nos dois textos que se seguem.
______________
Referências
MARCUSCHI,
Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In:
DIONISIO, Ângela Paiva; MACHADO, Anna Rachel; e BEZERRA, Maria
Auxiliadora. Gêneros textuais & ensino. 4 ed. Rio de Janeiro: Lucerna, p. 19-36.
SANTOS,
Maria Francisca Oliveira; QUEIROZ, Marinaide Lima de; MOURA, Tânia
Maria M.; e MIGUEL, Geilda de Souza. Os gêneros textuais. In: Gêneros textuais na educação de jovens e adultos. 2 ed. Maceió: FAPEAL, 2004. p.33-40.
NOVAIS, Fernando. A. A universidade e a pesquisa histórica apontamentos. Estudos Avançados, São Paulo, v. 4, n. 8, p. 108-115, jan./abr. 1990.
FREITAS, Itamar. Bibliografia historiográfica do século XIX. Historiografia sergipana. São Cristóvão: Editora da UFS, 2007. p. 23-34.
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. As histórias de Santiago e do seu Anuário. In: SANTIAGO, Serafim. Anuário Cristovense ou Cidade de São Cristóvão. São Cristóvão: Editora da UFS, 2009. pp. 9-16.
Nota
[1] Serafim
Santiago. Memorialista e funcionário público. Filho de José Florêncio e
Umbelina Santiago, nasceu em São Cristóvão a 4 de Janeiro de 1859 e
faleceu no mesmo município a 01 de janeiro de 1932. Casou-se com Sara em
25 de junho de 1887. Foi pai de 9 filhos, dos quais sete são
referenciados no Anuário: João B. de Santiago, Benjamin, Serafim
de Santiago Júnior, Francisca Xavier de Santiago, Umbelina Santiago
Prudente, Anita, e Pedro. Mudou-se para Aracaju em 29 de junho de 1887,
onde exercera o funcionalismo público. Aos 60 anos, começou a escrever
memórias sobre sua vivência em São Cristóvão que resultariam no mais
rico e inédito depoimento sobre a cultura sergipana do final do século
XIX até as primeiras décadas do século XX, o Anuário Cristovense.





Nenhum comentário:
Postar um comentário